Talleyrand e a grande imprensa brasileira
Redações esquecem em dois anos a rotina de ameaças e humilhações
Charles-Maurice de Talleyrand foi um político e diplomata francês que, no século XIX chegou a Primeiro-Ministro do país. Para esse texto, sua controversa biografia vale menos do que uma célebre frase a ele atribuída, quando afirmava sobre os Bourbon, então casa real, que “eles não aprenderam nada e, pior, não esqueceram nada também”.
É essa frase que me vem na cabeça com a blitz midiática da última semana do ora inelegível e provável futuro detento Jair Bolsonaro. Claro, um líder populista e ex-presidente é sempre uma figura de interesse jornalístico, não importa a qualidade do sujeito ou os (maus) valores que ele representa. E, numa sociedade polarizada, o que ele faz de seu presente e futuro importam para entender como o nosso cenário político pode se mover diante das incertezas geopolíticas e econômicas a frente.
Dito isso, alguma lição deveria ter sido aprendida pelos editores-chefe, em geral tão distanciados do barro nos sapatos de bons repórteres e tão próximos dos interesses comezinhos e elitistas dos donos dos veículos ou de seus anunciantes, sobre os duros anos de cobertura da presidência do Jair. Esse líder, tão auto-declaradamente cônscio da defesa irrestrita da liberdade de expressão - em geral um conceito fluído que na boca de maus atores se torna somente um libera geral em campanhas de desinformação, humilhação de minorias e achincalhe dos rivais - mas que em cujo governo houve a busca de silenciar os meios de mídia em massa ou com a supressão de propaganda de governo ou com pressão sobre anunciantes privados. O mesmo político que fez de indignidades cuspidas no cercadinho de acólitos descerebrados os seus press releases oficiais, e cujas lives eram transmitidas ao vivo pela NBR versão facho pela rede de rádio e TV de notícias 24. Que preferia falar com a Te Atualizei do que com a Rede Globo.
Hoje, como auto-declarado comandante de uma onda de direita que já começa a tratá-lo como passado, decide se oferecer catita para a tal extrema imprensa, ganhando em troca uma capa laudatória da Revista Veja, destaque no jornal do Grupo #GloboLixo, e um fatiados em três dias de sua fala com a Folha de S. Paulo. Ah, a ex-Foice de S. Paulo, que não satisfeita em ser contemplada com a frase de Talleyrand, também merece vestir a carapuça em outra tirada histórica, dessa vez de Churchill, que dizia que o primeiro-ministro britânico Arthur Chamberlain, humilhado por Hitler ao assinar o Acordo de Munique, tinha “entre a desonra e a guerra, escolhido a desonra. E terá a guerra”. A Folha achou que não havia normalizado o Trump Tupiniquim suficientemente, e deu a Jair uma coluna de opinião na qual o golpista canta as glórias da democracia - aquela na qual sua turma ganha, claro. De resto é fraude.
O mercado livre das ideias e a democracia permitem até àqueles que trabalham diuturnamente para solapar as instituições e a própria democracia que tenham sua voz ouvida. Mas existe uma linha bem pouco tênue entre dar espaço e endosso, e o salto da Folha por sobre essa linha teria ganho medalha de ouro nos Jogos Olímpicos.
Nem uma parca linha que contextualizasse que o agora prosélito das glórias da democracia tenha atuado para criar desconfiança no processo eleitoral, tenha se negado a reconhecer derrota no pleito de 2022 e a passar a faixa pro seu rival e sucessor, e até hoje pregue a catilinária golpista de fraude. Isso seria jornalismo, mas o que Folha e Veja - essa segunda com um rosto sorridente acompanhado da sentença de que ele será o candidato da direita à Presidência - fizeram foi propaganda. De um mau ator. De quem, em uma segunda chance, não deixará de cumprir seu propósito de destruição das instituições e da imprensa verdadeiramente livre, que ele despreza mais do que a democracia.
A grande mídia, inicialmente para tratá-lo como uma caricatura de extremista, como um idiota da vila a quem se procurava para ouvir as maiores parvoíces acerca de direitos humanos e de minorias, deu um holofote gratuito para que o deputadinho de baixo clero tivesse uma projeção maior do que seu papel de sindicalista de milico e gestor de rachadinha poderia lhe conferir. Somado a um uso hábil de mídias sociais (e de verbas de gabinete para voar pelo Brasil para dar verossimilhança à sua pantomima de inimigo do sistema), o papel de normalização que a imprensa fez de seu discurso fascistóide foi fundamental para sua vitória em 2018. Quando todo o establishment político, econômico e empresarial acordou, sua conquista do mais alto cargo da República era irreversível.
Durante os quatro anos de desgoverno, a mídia séria fez, muitas vezes, o correto enfrentamento de suas teses exóticas e falta de decoro ou espírito democrático que eram tudo que Jair conseguiu entregar. No início de 2023, especialmente após as invasões golpistas de 8 de janeiro, essa mesma imprensa conseguia caminhar para arremessar esse entulho autoritário para a lata do lixo. Mas hábitos antigos demoram para morrer, e o desdém elitista contra o ex-operário de esquerda que ganhou as eleições se manifestou em uma certa aceitação de que Jair é o líder da oposição por default. E o processo de normalização do Bolsonaro ou de nem-esse-nem-aquele, uma espécie de murismo entre um prato de jiló amargo e outro de bosta, começou e está em pleno vapor.
Como esse texto não está leve em citações de terceiros, fica aqui para a Folha particularmente mas à imprensa como um todo mais uma, essa atribuída a Einstein: a definição de insanidade é fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.
Texto delicioso